domingo, 3 de junho de 2012
Belenzinho - memórias de Morador
Por Vera Moratta
Interessante o bairro do Belenzinho. Na verdade, o conhecimento que tive, durante os três anos que trabalhei no bairro, foi muito limitado.
Eu dava aulas num curso técnico em plena Avenida Celso Garcia, no início dos anos 80. Saía pela manhã da Vila Sônia, tomava dois ônibus e descia quase na porta do Curso e Colégio Álvares de Azevedo.
Eu tinha orgulho de dar aulas ali. Afinal, o escritor Álvares de Azevedo foi uma das minhas grandes paixões literárias da adolescência. Escritor da segunda fase do Romantismo, tratava muito bem das questões do sonho, da idealização da mulher, da ternura, do lirismo.
Quando o meu pai comprou um apartamento na Rua Castro Alves, então, foi a glória! Eu me imaginava morando na Rua Castro Alves, o nosso primeiro grande poeta social, romântico também, idealista, abolicionista, que provocou, no seu tempo, discussões acaloradas sobre a questão da negritude e das injustiças sociais. Seria o máximo morar ali. Mas nunca morei.
Voltemos ao Belenzinho. Muitas vezes eu andava de metrô para chegar até ali. Eu tinha de andar por várias ruas, fazer várias quebradas, até chegar à Avenida Celso Garcia. Durante o dia, eu não sentia nenhum problema. Olhava muito.
Descobri um dia uma pequena fábrica de cristais e comprei algumas peças a preços baixos. Descobri também, nessas andanças, uma pequena fábrica de panetone, e comprei logo um de um quilo, e estava ótimo!
Eu sempre comprava pão numa padaria de esquina. Chegava para dar aula com o saco de pão na mão e nunca me dei conta de que meus colegas achavam graça disso. Nessa padaria tinha uma empada supimpa, que eu comia com guaraná Brahma, daquele dos bons. Que tristeza quando resolveram tirar o antigo guaraná Brahma do mercado! Era produzido desde 1918, como o mais tradicional do Brasil!
E a vida ia passando apressadamente, naquele tempo em que a ditadura dava os seus suspiros finais e procurávamos construir um projeto de democracia, buscar a essência da primavera do povo, com a força da juventude e da beleza dos mais experientes.
Em 1984, o país buscou como nunca, com o máximo vigor, a volta ao estado de Direito. A campanha pelas Diretas Já movimentou multidões de norte a sul do país, com os comícios acontecendo e envolvendo todos os tipos: trabalhadores, estudantes, profissionais liberais, intelectuais, desempregados... Enfim, foi o grande grito pela democracia que jamais o país havia vivenciado. Quanta beleza em tudo aquilo! As palavras de ordem: "greve geral derruba general", "estamos a fim da cabeça do Delfim"... E o envolvimento era intenso, quente, amoroso em relação à vida. Época de sede de libertação, de esperança, de sonho.
E lá no Belenzinho eu ia costurando as aulas com explicações sobre o tema, com viva participação daqueles alunos e alunas também sedentos por liberdade e fim de todos os grandes medos.
A maioria dos meus alunos era de origem simples. Muitos eram operários, motoristas e membros do até então clandestino Parido Comunista.
E eu gostava de encontrar algum aluno no metrô para irmos caminhando juntos até o curso. Eu tinha medo. As ruas eram muito escuras. Numa das noites encontrei um aluno, muito simpático, respeitador, mais velho que eu. Conversando sobre as coisas da vida, eu, ingenuamente, perguntei: "você não tem medo de andar de noite por aqui?". Ele riu mansamente e respondeu: "Vera, eu passei a vida inteira fugindo da polícia. Você acha que eu vou ter medo de ladrão?”. Eu havia me esquecido que ela era o mais idealista de todos aqueles meus conhecidos do Partido Comunista.
e-mail do autor: vmoratta@terra.com.br
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A História me fascina; propriamente, a história de minha cidade(São Paulo) e de sua formação, as migrações no estado de São Paulo, a história da ferrovia e as formações do folclore e da cultura musical do Sudeste.
Mas.. as "estórias" também sempre me envolveram e brilham ainda em minha memória; as "estórias" contadas pelo meu avô, sobre entidades folclorescas da escuridão, e suas digressões... Gosto do Lobisomen e do boitatá... E conversaremos sobre eles brevemente!
Gostaria de entrar em contato com quem morou no Belenzinho em meados doas anos 50.
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